ARTIGO:ABRIL/2017

Aplicabilidade do Teor do Projeto de Lei 4.302/98 à Administração Pública

Em: Direito Público

Roberta Moraes Dias Benatti

 

 

Resumo: Embora o entendimento doutrinário e jurisprudencial esteja consolidado no sentido de permitir a terceirização de atividades-meio pelo Estado, Projeto de Lei que regulamenta a contratação de mão de obra terceirizada pouco contribui para conferir segurança jurídica à prática no Âmbito da Administração Pública, diante da ausência de regulação legal do tema.

 

I - INTRODUÇÃO

 

Não há na legislação vigente a conceituação da terceirização de serviços.

 

Por essa razão, existe no Projeto de Lei n° 4.302/98, que aguarda a sanção ou veto presidencial desde 22 de março de 2017, a expectativa no sentido de que o assunto seja regulamentado.

 

Todavia, o que se vê, apesar da polêmica em torno de tal iniciativa, sobretudo com relação à possibilidade da terceirização irrestrita e da quarteirização, sem prejuízo de outras importantes alterações com relação ao contrato temporário e demais aspectos trabalhistas e previdenciários, é que o Projeto de Lei, caso sancionado, promulgado e publicado, pouco afetará à Administração e contribuirá em conferir maior segurança jurídica aos contratos de terceirização firmados pelo administrador público.

 

Em voga o assunto em tela, porque para alguns se trata de importante aliada a contribuir na absorção de mão de obra excedente no mercado, dinamizar as relações de trabalho e conferir maior fôlego econômico ao país, para outros, se trata de retrocesso às garantias trabalhistas. Para a esfera do direito administrativo, contudo, não há como tal regulamentação se aplicar ao Poder Público, sem que afronte o artigo 37, incisos I e II da Constituição Federal.

 

 

II — BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A TERCEIRIZAÇÃO DE SERVIÇOS PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.

 

A terceirização de serviços é polêmica com relação à sua prática pelo Poder Público, em que inexiste espaço para a autonomia de vontade na atuação estatal.

 

Isso porque os atos administrativos devem estar vinculados à lei, aos limites daquilo que a legislação determina. Essa é a essência do princípio da legalidade, que rege a Administração Pública.

 

Portanto, em se tratando da contratação de serviços prática corriqueira na Administração, porque consubstanciada em normativos esparsos e em entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, existe sobre a matéria certo limbo jurídico que traz insegurança ao gestor e às empresas que contratam com o Poder Público.

 

Recorrentes são as arguições do Controle Externo sobre a legalidade da prática administrativa no exame de licitações e contratos, bem como na emissão de parecer sobre as contas anuais do executivo. Por essa razão, esperava-se que a regulamentação da atividade terceirizada pusesse fim à celeuma jurídica.

 

A terceirização de atividades pelo Estado está amparada na Constituição Federal. A possibilidade de contratação de serviços se insere no artigo 37, inciso XXI, quando dispõe sobre a obrigatoriedade do processo licitatório para a contratação das obras, serviços, compras e alienações. E, nesse sentido, a Lei Federal n° 8.666/93 instituiu as normas gerais do processo licitatório e trouxe a definição de serviços, como sendo toda a atividade destinada a obter alguma utilidade de interesse da Administração, exemplificando-as.

 

Não menos válido citar que sobre a possibilidade de terceirização de atividades da Administração, a Constituição Federal prevê o instituto jurídico da delegação, concessão, permissão ou autorização de serviços à iniciativa privada, ainda que para a análise do tema, tais institutos não sejam aplicáveis.

 

Portanto, embora a prestação de serviços pela iniciativa privada junto ao Poder Público seja pacificamente permitida, não há uma verdadeira regulamentação sobre o tema, ou uma definição legal sobre quais serviços podem ou não ser contratados pelo Estado.

 

A definição trazida pela lei geral de licitações e contratos, de que serviços compreendem atividades destinadas a obter alguma utilidade de interesse da Administração é muito abrangente.

 

Indo mais adiante, podemos citar como exemplo de norma que se refere à contratação de serviços, a Lei de Responsabilidade Fiscal.

 

A Lei Complementar n° 101/2000 não conceitua as atividades terceirizáveis. Todavia, para as normas orçamentárias públicas incidentes e os limites de despesas ao longo de um exercício financeiro, o seu artigo 18 e 19 prevê os efeitos, para registro contábil, das consideradas terceirizações lícitas e ilícitas. Ou seja, os gastos com terceirizações lícitas serão computados como gastos com serviços de terceiros e não onerarão as despesas com pessoal, enquanto que as despesas com terceirizações ilícitas, se assim declaradas, deverão acrescer o volume de gastos com pessoal próprio ao final do exercício e, portanto, poderá comprometer a regularidade orçamentária do exercício, sem prejuízo das demais sanções decorrentes de uma gestão irresponsável ou ímproba do ordenador de despesas.

 

Apesar da falta de regulamentação até então sobre o tema, os Tribunais de Contas sedimentaram jurisprudência de que a terceirização é legítima, desde que não destinadas para a prestação de atividades-fim da Administração e desde que não impliquem na execução de atividades próprias dos quadros do órgão ou da entidade.

 

O acórdão exarado pelo Tribunal de Contas da União, nos autos dos TCs. 014.100/2001-6 e 008.906/2002-6 reafirma a jurisprudência consolidada pelo Controle Externo, no sentido de que a "terceirização só é legal se ausentes a pessoalidade, a subordinação direta e se se tratar de serviços ligados à atividade meio do tomador", em compatibilidade com o Enunciado 331 do TST.

 

O julgado supra, portanto, se firmou diante do Enunciado do Tribunal Superior do Trabalho que, supostamente, teria resolvido a questão.

 

A súmula estabeleceu o paradigma da atividade-meio e atividade-fim, tão amplamente citado pela doutrina e jurisprudência do Judiciário e do Controle Externo, porque vedou expressamente a contratação de serviços que importem na execução de atividades finalísticas da tomadora, seja ela privada ou pública.

 

Como norte, o Decreto Federal n° 2.271, de 07 de julho de 1997, que trata da contratação de serviços no âmbito Federal, pelos Órgãos da Administração Pública Direta e Indireta (Autarquias e Fundações Públicas), trouxe como exemplos de atividades meio, aquelas consideradas acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituem área de competência legal do órgão ou da entidade e que, portanto, são passíveis e, nos termos da norma, preferencialmente terceirizáveis:

 

"Art . 1° No âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional poderão ser objeto de execução indireta as atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituem área de competência legal do órgão ou entidade.

§ 1° As atividades de conservação, limpeza, segurança, vigilância, transportes, informática, copeiragem, recepção, reprografia, telecomunicações e manutenção de prédios, equipamentos e instalações serão, de preferência, objeto de execução indireta.

§ 2° Não poderão ser objeto de execução indireta as atividades inerentes às categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou entidade, salvo expressa disposição legal em contrário ou quando se tratar de cargo extinto, total ou parcialmente, no âmbito do quadro geral de pessoal".

 

Da leitura da norma trazida ao estudo, poder-se-ia admitir que ao elencar serviços preferencialmente terceirizáveis, a União estaria sinalizando à sua estrutura direta e indireta a necessidade de especialização na prática das suas atividades finalísticas e, para o exercício das funções assim consideradas inerentes ou abrangidas pelo plano de cargos próprios, devem os servidores estarem investidos em cargos ou empregos públicos, em consonância com o que preceitua a Constituição Federal, artigo 37, incisos I e II, enquanto que para as demais, tidas como secundárias, subalternas ou acessórias, como as atividades-meio, deverá a Administração se valer da terceirização.

 

Assim, à luz do Decreto Federal n° 2.271/97, a contratação de serviços estaria justificada pelo viés da especialização e pela redução dos custos com mão de obra, impactando certo desinchaço na máquina estatal.

 

Tal motivação é a mesma adotada pelos demais entes da federação. As justificativas das áreas técnicas, para embasar a licitação ainda na fase interna buscam indicar que a terceirização traria economia aos cofres públicos e vantagens em sentido amplo.

 

Todavia, embora tenhamos citado entendimentos e normativos que tratam ampasan da terceirização no Estado, o conceito de atividade-meio e atividade-fim não é claro em algumas situações.

 

Apesar do Decreto n° 2.271/97 se aplicar ao ente federal e no que diz respeito à Administração Indireta, às autarquias e fundações, tomemos como exemplo o que a norma traz como atividades-meio: conservação, limpeza, segurança, vigilância, transportes, informática, copeiragem, recepção, reprografia, telecomunicações e manutenção de prédios, equipamentos e instalações.

 

Tratam-se essas, de forma geral, de atividades acessórias, operacionais, administrativas e que comumente são referenciais de atividades-meio da Administração.

 

Porém, se tomarmos como exemplo a PRODAM, no município de São Paulo, que tem como atividade-fim o processamento de dados de toda a Prefeitura, é intrínseco das atividades desenvolvidas pela PRODAM os serviços de informática, de digitação, de estruturação de rede e, nesse diapasão, não é passível, no caso concreto, sua terceirização.

 

Importante ressaltar, por fim, que mesmo diante de uma atividade indiscutivelmente meio no âmbito da Administração, deverá o gestor se atentar ao organograma do órgão disposto em lei própria.

 

Diante da sinalização dos Tribunais de Contas e mesmo utilizando-se como referencial o disposto no §2° do artigo 1° do Decreto Federal n° 2.271/97, se existir no plano de carreiras, cargos envolvendo atividades-meio no órgão, para que se imprima regularidade à contratação, tais cargos deveriam ser preferencialmente extintos por lei ou preenchidos por meio de concurso público.

 

Nesses termos, citamos teor do relatório do voto do Conselheiro Relator, nos autos do TC 1165/008/09, que embora não seja recente, exprime o entendimento exposto acima:

 

"No que tange à recomendação anterior desta Corte, o r. julgado recorrido identificou haver orientação expedida no sentido de priorizar o exercício de atividades permanentes mediante o provimento de cargos efetivos, tendo em vista a existência de várias contratações anteriores envolvendo objetos semelhantes da mesma Prefeitura (cf. TC-001879/008/05 e outros, E. Primeira Câmara, sessão de 10/04/07, DOE de 08/05/07, processos sob a relatoria do eminente Conselheiro Cláudio Ferraz de Alvarenga).

(...)

Não desconheço a possibilidade de terceirização de atividades-meio, porém devo acrescentar que o objeto previu uma série de funções tipicamente exercidas por servidores públicos, como operadores de máquinas, motoristas e auxiliares, incluindo até 110 (cento e dez) postos para serviços gerais, dentre outros".

 

Trata-se de atividade-meio, indiscutivelmente, como bem reconhecido pelo Relator, porém, no caso concreto, existia no organograma da Municipalidade cargos vagos para atividades compatíveis com aquelas contratadas através de processo licitatório em exame.

 

III — DA INCONSTITUCIONALIDADE DO PROJETO DE LEI PARA CONTRATAÇÃO DE ATIVIDADES-FIM DA ADMINISTRAÇÃO — DA POUCA APLICABILIDADE DOS DISPOSITIVOS À REALIDADE ESTATAL.

 

Em verdade, no que diz respeito à contratação de serviços pela Administração, temos que o Projeto de Lei tem pouca aplicabilidade às contratações públicas, e pouco serve para apaziguar a insegurança jurídica com relação aquilo que pode ou não ser terceirizado. É essa, a interpretação que deve ser dada ao seu teor ou então, os seus dispositivos serão flagrantemente considerados inconstitucionais.

 

O Projeto de Lei n° 4.302/98, dentre outros, prevê as contratações terceirizadas para a realização de atividades-fim sem restrição, prorroga o prazo do trabalho temporário e permite sua contratação em casos de greve ou paralisação indevida, a responsabilidade subsidiária da tomadora de serviços e a contratante com relação ao funcionário terceirizado e a quarteirização.

 

Conclui-se que a iniciativa de lei amplamente discutida pelo Legislativo e Executivo, como estratégica para absorção da mão de obra no mercado e fomento da economia, trará impacto significativo à iniciativa privada e somente a ela.

 

Ao Poder Público, por sua vez, detentor de contratos com empresas de terceirização para a prestação de serviços considerados atividades-meio, caberá fiscalizar o cumprimento das relações mantidas entre seu Contratado e Funcionário, que refletirá na regularidade trabalhista da empresa prestadora de serviços.

 

Especificamente sobre a terceirização irrestrita, como visto, o Enunciado 331 do TST, veda a contratação de atividades-fim das empresas privadas, o que, diante do atual cenário intrincado das cadeias produtivas que envolvem as atividades econômicas, a vedação da terceirização de atividades-fim é da mesma forma bastante polêmica e incerta.

 

Com relação aos impactos sobre as contratações pelo Poder Público, o Projeto não põe fim às discussões, porque não traz definições, somente prevê que todas as atividades podem ser terceirizadas.

 

O Estado é obrigado pelo artigo 37, incisos I e II da Constituição Federal a deflagrar concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade da função pública, na forma prevista na lei que instituiu o plano de carreiras do respectivo órgão ou entidade pública, para a investidura de servidor em cargo ou emprego definitivo, com exceção dos servidores temporários, cuja situação deverá ser disciplinada em lei específica do órgão público, e dos cargos em comissão.

 

Logo, a possibilidade de terceirização das atividades-fim estatais não encontra guarida constitucional e, ainda, fere os princípios constitucionais que regem a Administração, sobretudo os da impessoalidade e da transparência.

 

A relação da Administração com os servidores temporários contratados pelo Estado para atender excepcional interesse público permanecerá sendo tratada pela lei própria do ente, que deverá dispor sobre os motivos que justificam a contratação, os prazos máximos admitidos e o procedimento de seleção. Portanto, a contratação de serviços temporários pela Administração, seja por hipótese de emergência ou para suprir excepcional interesse público transitório, não será afetada, porque que não se confunde com a relação do trabalho temporário firmado pela iniciativa privada com o funcionário, essa sim, atingida diretamente.

 

Quanto à possibilidade de quarteirização, veja, para a Administração prevalece o princípio da impessoalidade. Assim, comprovada a capacidade técnica da empresa quarteirizada na execução do objeto contratual, os serviços contratados poderiam ser prestados em conformidade com as exigências impostas pelo Poder Público e, ainda, a responsabilidade subsidiária da Administração com relação ao prestador de serviços seria ainda mais diluída.

 

Atualmente, a subcontratação já é permitida, desde que prevista no edital e contrato administrativo, mas não sobre todo o escopo contratual. Com a possível vigência da lei, comprovada a capacidade técnica da prestadora de serviços, o valor contratado e a garantia passível de ser executada pelo Estado, poder-se-ia admitir a quarteirização do escopo contratual, mas que, na prática, não interfere na obrigação da Contratada direta junto à Contratante de garantir a boa consecução do objeto.

 

Com relação à responsabilidade da Administração sobre o funcionário terceirizado, o Projeto de Lei que prevê a responsabilidade subsidiária da Tomadora de Serviços, no caso, o Poder Público, se amolda ao entendimento que vem prevalecendo pelo Poder Judiciário no sentido de admitir a responsabilidade subsidiária estatal.

 

Quanto ao que se entende por atividade-meio, que permanece passível de terceirização, vê-se, pois, que nada contribui o aludido projeto de lei para conferir maior segurança jurídica ao ordenador de despesas e às prestadoras de serviços.

 

Todavia, o que poderá se observar com a vigência da lei, se o caso, mesmo que tal situação já seja plenamente possível, é que em face de uma interpretação sistêmica sobre o ordenamento jurídico, possa haver uma tendência maior, pela vontade do legislador, da redução dos quadros funcionais dos órgãos públicos, mediante a extinção de cargos para serviços operacionais, por iniciativa do legislativo.

 

Em contrapartida, como efeito reverso, poderá ser experimentado o aumento significativo de candidatos em concursos públicos, diante da insegurança gerada pela possibilidade de terceirização e quarteirização ampla das atividades no setor privado.

 

Assim, diante das breves reflexões propostas, conclui-se que o polemizado Projeto de Lei n° 4.302/98 poderá gerar as empresas tomadoras de serviços, maiores condições de absorção do mercado de trabalho e maior fôlego econômico. Às empresas que prestadoras de serviços, possibilidade de absorção de grande demanda por atividades terceirizadas no mercado.

 

Ao Poder Público permanece a incerteza em face da ausência de regulamentação da atividade passível de terceirização, mantendo-se a situação de status quo. Diante desse cenário, imprescindível é a edição de lei que trate do assunto no âmbito estatal, para que seja conferida a devida segurança jurídica ao ordenador de despesas e às empresas prestadoras de serviços e seus funcionários.


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