Artigo: Abril/ 2020

Poder de policia e interesse público no contexto de Pandemia de COVID-19

Em: Direito Público

INTRODUÇÃO

A pandemia do Covid-19 fez voltar a atenção dos aplicadores do direito e dos administradores públicos conceitos clássicos de direito administrativo que andavam em desuso. Isto porque a situação excepcional exigiu e ainda exige medidas restritivas de direitos para, de acordo com o consenso científico vigente, controlar a propagação do coronavírus.

 

Contudo, este reavivamento de conceitos acaba se traduzindo em restrições a direitos individuais, isto é, o choque entre interesse particular e interesse público também retorna. E são progressivas essas medidas que fatalmente intervêm na liberdade econômica, tais como aquelas elencadas na Lei 13.979/20, qual sejam restrição à liberdade de locomoção, realização obrigatória de exames médicos, vacinas e tratamentos, requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas e fechamento temporário de estabelecimentos comerciais.

 

INTERESSE PÚBLICO, PRIVADO E COMPETÊNCIAS ADMINISTRATIVAS

 

No âmbito local a requisição administrativa, interdição temporária de estabelecimentos comerciais, suspensão temporária de atividades empresariais, vêm sendo repetidamente previstos por meio de Decretos. Há Decretos Municipais, por exemplo, que restringem o funcionamento de qualquer atividade comercial e industrial no Município, sob pena de cassação do alvará de funcionamento, a exceção das atividades elencadas como essenciais.

 

É ônus argumentativo da Administração, contudo, fundamentar o elenco de atividades essenciais, sob pena de violação dos princípios que regem a Administração Pública, o que deve justificar não só a essencialidade da atividade no contexto de controle de infecção, atendimento médico e pesquisa de tratamentos, como casos em que inexiste risco qualquer na manutenção da atividade.

 

Isto porque o fundamento jurídico da imposição destas medidas é a supremacia do interesse público. Evidente, todavia, que não é termo capaz de suprir a referida fundamentação. Trata-se da base na qual a fundamentação pertinente e específica será trabalhada. A suspensão da atividade desenvolvida pela empresa, por ato da Administração Pública, deve se vincular à preservação da saúde pública, difusa e da coletividade e dos trabalhadores da empresa, à essencialidade do serviço no cenário de calamidade pública, bem como ao risco concreto e potencial causado da atividade. Eis os pontos que requerem fundamentação administrativa.

 

Havendo suspensão, impedimento, ou qualquer outro meio sem relação direta com a circunstância de calamidade pública, cujos critérios não sejam objetivos, o ato administrativo estará sujeito a revisão judicial. É possível, portanto, requerer a reabertura de comércio e indústria por meio de ação judicial.

 

Não há sucesso possível no âmbito judicial o questionamento do princípio da supremacia em si, uma vez que apesar de não deter definição expressa, a categoria jurídica interesse público decorre da presença expressa na Constituição Federal e tem o seu sentido amparado pela sistemática principiológica deste mesmo diploma. Não por outra razão a dignidade da pessoa humana é fundamento da república, cuja manifestação pública se dá pela participação popular em diálogo na Administração.

 

Assim, a argumentação no sentido contrário, de que o interesse particular se sobrepõe ao público ou que inexiste relação de supremacia somente poderia ser desenvolvida em outro contexto constitucional. O interesse que se submete ao interesse público é aquele unicamente particular, ou seja, restrito a indivíduo concreto, interesse pessoa física ou jurídica que se garantido compromete o interesse público. Em outras palavras, o interesse privado juridicamente tutelado compõe o interesse público.

 

Não por outro motivo a Constituição Federal, que é o critério último de validade de normas no âmbito interno, elenca em diversos dispositivos a tutela do interesse público, o que vai delimitar o alcance dos direitos individuais nos períodos de calamidade sanitária. A legitimidade conferida pelas urnas ao administrador local ou regional também é critério constitucional de divisão de competências, pois presume-se que aquele administrador escolhido está apto a, conhecendo as particularidades geográficas e culturais, encontrar a medida razoável, proporcional, eficiente que seja transparente e não excessiva para a proteção das vidas.

 

Nesse sentido está o posicionamento do Supremo Tribunal Federal em conferir competência comum administrativa aos entes federados na execução de medidas de combate e profilaxia da pandemia de COVID-19. De outro modo, como já ocorre em outras questões problemáticas do federalismo brasileiro, as diversas e múltiplas regiões do país estariam submetidos a conduta uniforme e indiscriminada elaborada pelo governo federal, o qual evidentemente tem dever de planejamento e apontamento de diretrizes, mas absolutamente inapto a regular o funcionamento de comércio, indústria, e turismo por exemplo em situações como essa. O que, é importante que se diga, não guarda relação com governante x ou y.

 

CONCLUSÃO

 

Dadas as condições da pandemia de COVID-19, e o substrato legal geral e específico, é inafastável apontar que interesse público tem fundamento na busca pelo bem comum e no respeito à dignidade da pessoa humana, vez que não existe equivalência entre interesse público e interesse estatal. O que, necessariamente, leva à conclusão de que não há exclusividade do Poder Público Estado na defesa do interesse público, visto que a sociedade deve ser internalizada ao processo de formação de convencimento decisório no âmbito administrativo.

 

Portanto, no que tange às medidas administrativas a serem tomadas pelos governos locais, os administrados têm direito pleno a exigir a fundamentação racional das medidas, que considerem a preservação da saúde pública, difusa e da coletividade e dos trabalhadores da empresa, à essencialidade do serviço no cenário de calamidade pública, bem como ao risco concreto e potencial causado da atividade, nos casos de suspensão de atividades privadas, sob pena de revisão judicial. Assim, a ampla delimitação do conceito de interesse público não deve ser originada, construída e concluída a partir do Estado unicamente, mas pela ativa participação da sociedade pelos meios institucionais diretos e indiretos.

 


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